A trombofilia é um distúrbio da coagulação sanguínea que predispõe o indivíduo a um risco aumentado de desenvolver eventos trombóticos, como trombose venosa profunda (TVP) e embolia pulmonar. Esse estado pode ser hereditário, quando há mutações genéticas que afetam os fatores da coagulação, ou adquirido, devido a condições como síndrome do anticorpo antifosfolípide, uso de anticoncepcionais hormonais e outras doenças sistêmicas.
A relevância da trombofilia na prática clínica está na sua relação direta com complicações potencialmente graves, que podem levar a sequelas permanentes ou até mesmo ao óbito. A suspeita clínica deve ser levantada em casos de trombose recorrente, histórico familiar positivo ou eventos trombóticos em locais incomuns.
O diagnóstico precoce é fundamental para que sejam adotadas medidas preventivas, especialmente em grupos de risco, como gestantes, mulheres em uso de contraceptivos hormonais e pessoas submetidas a cirurgias ou imobilização prolongada. A identificação da trombofilia permite a implementação de estratégias individualizadas, incluindo uso de anticoagulantes quando necessário, evitando complicações tromboembólicas graves.
O Que é Trombofilia?
A trombofilia é um distúrbio da coagulação sanguínea caracterizado por uma tendência aumentada à formação de coágulos (trombos) dentro dos vasos sanguíneos. Em condições normais, o sistema de coagulação equilibra a formação de coágulos para evitar sangramentos e a dissolução desses trombos quando não são mais necessários. No entanto, em indivíduos com trombofilia, esse equilíbrio é alterado, aumentando o risco de eventos trombóticos, como trombose venosa profunda (TVP) e embolia pulmonar.
A trombofilia pode ser classificada em três categorias principais: hereditária, adquirida e mista.
Trombofilia Hereditária
Também conhecida como trombofilia genética, essa forma ocorre devido a mutações hereditárias em genes responsáveis pela coagulação sanguínea. Algumas das principais causas incluem:
- Mutação do Fator V de Leiden – A mutação mais comum, que leva a uma resistência à proteína C ativada, aumentando o risco de trombose.
- Mutação do gene da Protrombina (G20210A) – Aumenta os níveis de protrombina no sangue, favorecendo a coagulação excessiva.
- Deficiência de Proteína C, Proteína S ou Antitrombina – Proteínas essenciais para a regulação da coagulação, cuja deficiência pode aumentar significativamente o risco trombótico.
Trombofilia Adquirida
Diferente da forma hereditária, a trombofilia adquirida não está presente desde o nascimento, mas se desenvolve ao longo da vida devido a condições médicas ou fatores ambientais. Entre as principais causas estão:
- Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide (SAF) – Uma condição autoimune na qual anticorpos atacam componentes da coagulação, aumentando o risco de trombose venosa e arterial.
- Câncer e Doenças Inflamatórias Crônicas – Algumas neoplasias e doenças inflamatórias sistêmicas podem ativar mecanismos pró-coagulantes.
- Uso de Anticoncepcionais Hormonais ou Terapia de Reposição Hormonal – O estrogênio pode aumentar a produção de fatores pró-coagulantes no sangue.
- Cirurgias, Traumas e Imobilizações Prolongadas – Situações que favorecem o estase venoso e a ativação do sistema de coagulação.
Trombofilia Mista
Em alguns casos, os pacientes podem apresentar uma combinação de fatores hereditários e adquiridos que elevam ainda mais o risco de trombose. Por exemplo, uma pessoa com mutação do Fator V de Leiden pode desenvolver trombose mais precocemente se for exposta a fatores adquiridos, como uso de anticoncepcionais ou imobilização prolongada.
O reconhecimento precoce do tipo de trombofilia é essencial para definir estratégias de prevenção e tratamento, reduzindo o risco de eventos trombóticos graves.
Quando Suspeitar de Trombofilia?
A suspeita de trombofilia deve ser levantada sempre que um paciente apresenta um risco aumentado de eventos trombóticos sem uma causa aparente. Embora a trombose possa ocorrer em qualquer pessoa devido a fatores transitórios, como cirurgias ou imobilizações prolongadas, algumas características específicas sugerem uma predisposição genética ou adquirida para a formação anormal de coágulos. A seguir, são destacados os principais sinais de alerta para a investigação de trombofilia.
1. Histórico Familiar de Trombose
A presença de familiares de primeiro grau (pais, irmãos ou filhos) com episódios de trombose venosa profunda (TVP) ou embolia pulmonar em idade jovem pode indicar uma predisposição genética. Mutações hereditárias, como o Fator V de Leiden e a mutação do gene da protrombina, frequentemente seguem um padrão de transmissão familiar, aumentando o risco trombótico entre parentes diretos.
2. Episódios Recorrentes de Trombose Venosa ou Arterial
Pacientes que apresentam trombose de repetição, sem fatores desencadeantes evidentes, devem ser avaliados para trombofilia. Enquanto eventos únicos podem estar associados a situações específicas, como cirurgias ou períodos prolongados de imobilização, a recorrência sugere uma predisposição subjacente à hipercoagulabilidade.
3. Trombose em Locais Incomuns
A ocorrência de trombose em locais pouco frequentes, como veias hepáticas (síndrome de Budd-Chiari), veias mesentéricas, veias cerebrais ou veias retinianas, é um forte indicativo de que o paciente pode ter uma condição trombofílica. Nessas situações, exames específicos para trombofilia devem ser solicitados para identificar possíveis causas genéticas ou adquiridas.
4. Eventos Tromboembólicos em Idade Jovem (<50 anos)
Embora a trombose possa ocorrer em qualquer idade, eventos trombóticos que surgem antes dos 50 anos, especialmente sem fatores predisponentes conhecidos, devem ser investigados. Em indivíduos jovens, a presença de trombose pode estar associada a mutações genéticas que afetam os fatores da coagulação.
5. Perdas Gestacionais Recorrentes ou Complicações Obstétricas
Mulheres com histórico de abortos espontâneos recorrentes (especialmente após o primeiro trimestre), pré-eclâmpsia grave, restrição de crescimento fetal e descolamento prematuro da placenta devem ser investigadas para trombofilia. A síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAF) é uma das principais causas adquiridas de complicações gestacionais, pois promove eventos trombóticos na placenta, comprometendo a oxigenação e o desenvolvimento do feto.
A identificação precoce de trombofilia nesses casos é essencial para a adoção de estratégias preventivas, como o uso de anticoagulantes durante a gestação, reduzindo o risco de complicações maternas e fetais.
A avaliação de trombofilia deve ser sempre individualizada, considerando o histórico clínico do paciente e seus fatores de risco. O diagnóstico correto permite o manejo adequado, prevenindo complicações graves e melhorando a qualidade de vida dos indivíduos afetados.
Quais Exames Pedir para Investigação de Trombofilia?
A investigação da trombofilia envolve exames laboratoriais que ajudam a identificar distúrbios da coagulação responsáveis pelo aumento do risco de trombose. Esses testes são divididos em categorias, conforme a natureza da trombofilia: hereditária, adquirida, mista/combinada e outras mutações genéticas associadas à hipercoagulabilidade.
1. Testes Básicos
Antes da investigação detalhada, exames gerais de coagulação são úteis para avaliar anormalidades hematológicas iniciais:
- Hemograma completo: detecta alterações na contagem de plaquetas e células sanguíneas.
- Tempo de Protrombina (TAP) e Razão Internacional Normalizada (INR): avalia a função da via extrínseca da coagulação.
- Tempo de Tromboplastina Parcial Ativada (TTPA): investiga a via intrínseca da coagulação e pode estar alterado em algumas trombofilias adquiridas.
2. Testes Específicos para Trombofilias Hereditárias
Mutação de Fatores de Coagulação e Reguladores da Hemostasia
- Mutação do Fator V de Leiden: resistência à proteína C ativada, aumentando o risco de trombose.
- Mutação da Protrombina (G20210A): eleva a produção de protrombina, favorecendo a coagulação.
- Disfibrinogenemias: alterações estruturais do fibrinogênio que comprometem a formação e dissolução de coágulos.
- Fator IX e Fator XI elevados: associados a risco aumentado de hipercoagulabilidade.
Mutação em Genes Reguladores da Coagulação
- Mutação MTHFR (Variantes 677C>T e 1298A>C): pode levar a hiperhomocisteinemia, aumentando o risco de eventos trombóticos.
- Mutação PAI-1 (675G>A (4G/5G) e 844A>G): alterações na degradação dos coágulos, predispondo à trombose.
Deficiências de Proteínas Anticoagulantes
- Deficiência de Antitrombina III: reduz a inibição da trombina e do Fator Xa, aumentando o risco trombótico.
- Deficiência de Proteína C e Proteína S: essenciais para a regulação da coagulação; sua deficiência favorece a trombose.
- Deficiência de Proteína Z: pode comprometer a regulação da coagulação e aumentar a formação de coágulos.
- Resistência à Proteína C ativada (APCR): pode ocorrer independentemente da mutação do Fator V de Leiden.
3. Testes para Trombofilia Mista ou Combinada
Trombofilias mistas combinam fatores hereditários e adquiridos, tornando a investigação mais complexa.
- Atividade elevada do Fator VIII: aumento dos níveis dessa proteína está associado a maior risco de trombose venosa profunda (TVP).
- Aumento do Fibrinogênio: níveis elevados dessa proteína podem predispor à hipercoagulabilidade.
- Hiperhomocisteinemia: associada à mutação do gene MTHFR, essa condição aumenta a tendência à formação de coágulos e pode estar relacionada a eventos cardiovasculares.
4. Testes para Trombofilias Adquiridas
Quando há suspeita de fatores adquiridos contribuindo para trombose, exames imunológicos e funcionais são necessários:
- Anticardiolipina IgG/IgM: marcador da síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAF).
- Anticoagulante Lúpico: detecta inibidores adquiridos da coagulação.
- Anti-β2-glicoproteína I: outro teste essencial na SAF.
5. Testes para Outras Trombofilias e Variantes Genéticas Associadas ao Risco Trombótico
Além das trombofilias clássicas, algumas variantes genéticas podem contribuir para um estado pró-trombótico:
- APOE (Cys112Arg e Arg158Cys): variantes do gene da apolipoproteína E podem influenciar o metabolismo lipídico e a predisposição à trombose.
- EPCR (4678G/C): mutações no receptor da proteína C endotelial podem afetar a resposta anticoagulante natural do organismo.
- ACE Ins/Del: polimorfismos no gene da enzima conversora de angiotensina (ECA) podem estar associados ao risco cardiovascular e eventos trombóticos.
- Fibrinogênio (455G>A): variantes nesse gene podem afetar a função do fibrinogênio e predispor à trombose.
- Fator XIII (Val34Leu): alterações na estabilidade do coágulo podem impactar a formação e dissolução da fibrina.
A investigação de trombofilia deve ser personalizada, considerando o histórico clínico e os fatores de risco do paciente. Identificar corretamente as causas da hipercoagulabilidade permite a adoção de estratégias preventivas eficazes, reduzindo a incidência de eventos trombóticos e melhorando o prognóstico dos pacientes.
Qual a Importância do Diagnóstico e Manejo da Trombofilia?
A identificação precoce da trombofilia é fundamental para a prevenção de complicações graves, como trombose venosa profunda (TVP), embolia pulmonar (TEP), trombose arterial e complicações obstétricas. O manejo adequado envolve estratégias de prevenção, uso criterioso de anticoagulantes e cuidados específicos para grupos de maior risco, como gestantes e mulheres em uso de anticoncepcionais hormonais.
1. Estratégias de Prevenção para Pacientes de Alto Risco
Pacientes com diagnóstico de trombofilia, especialmente aqueles com histórico pessoal ou familiar de trombose, devem adotar medidas para reduzir o risco de eventos trombóticos. Algumas estratégias incluem:
- Hábito de vida saudável: manter peso adequado, alimentação balanceada e prática regular de atividade física para evitar fatores de risco adicionais, como obesidade e sedentarismo.
- Hidratação adequada: ajuda a evitar a hiperviscosidade sanguínea, reduzindo a probabilidade de formação de coágulos.
- Evitar períodos prolongados de imobilização: longas viagens ou repouso no leito aumentam o risco de trombose; nesses casos, recomenda-se movimentação periódica e uso de meias de compressão, se necessário.
- Suspensão do tabagismo: o cigarro contribui para um estado inflamatório e pró-trombótico, aumentando o risco de complicações.
- Avaliação médica antes do uso de hormônios: mulheres com trombofilia devem ser avaliadas antes de utilizar anticoncepcionais hormonais ou terapia de reposição hormonal.
2. Papel da Anticoagulação em Casos Específicos
A anticoagulação é a principal estratégia terapêutica para reduzir o risco de trombose em pacientes com trombofilia. No entanto, o uso desses medicamentos deve ser bem avaliado, considerando os riscos de sangramento e os benefícios para cada caso.
Quando a anticoagulação é indicada?
- Pacientes com trombofilia e histórico de trombose venosa ou arterial.
- Pacientes de alto risco em períodos críticos, como pós-operatório, imobilização prolongada e gestação.
- Pacientes com síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAF) com eventos trombóticos prévios.
Principais anticoagulantes utilizados:
- Varfarina: anticoagulante oral de uso prolongado, requer monitoramento frequente do INR.
- Heparina de Baixo Peso Molecular (HBPM): utilizada principalmente em gestantes e em situações de curto prazo.
- Novos anticoagulantes orais (DOACs): como rivaroxabana, apixabana e dabigatrana, que não requerem monitoramento laboratorial frequente, mas precisa de acompanhamento médico e exames a cada 3 meses.
3. Cuidados Especiais em Gestantes e Mulheres em Uso de Anticoncepcionais Hormonais
Gestação e Trombofilia
A gravidez é um período naturalmente hipercoagulável devido a alterações hormonais e fisiológicas, aumentando o risco de trombose, especialmente em mulheres com trombofilia. Algumas complicações associadas incluem:
- Perdas gestacionais recorrentes
- Pré-eclâmpsia e restrição do crescimento fetal
- Descolamento prematuro de placenta
Mulheres com diagnóstico de trombofilia devem ser acompanhadas por um especialista e, em alguns casos, fazer uso de heparina de baixo peso molecular (HBPM) para prevenir complicações obstétricas e trombóticas.
Anticoncepcionais Hormonais e Risco de Trombose
O uso de anticoncepcionais hormonais combinados (com estrogênio e progestágeno) pode aumentar significativamente o risco de trombose em mulheres com trombofilia. Para essas pacientes, recomenda-se:
- Opções seguras: métodos não hormonais (DIU de cobre, camisinha, diafragma) ou anticoncepcionais contendo apenas progestágenos (DIU hormonal, implante, minipílula).
- Avaliação individualizada: a escolha do método contraceptivo deve ser feita com orientação médica para minimizar riscos.
Conclusão
A trombofilia é uma condição que pode aumentar significativamente o risco de eventos trombóticos, tornando essencial o diagnóstico correto e precoce. A identificação dos fatores hereditários e adquiridos que contribuem para a hipercoagulabilidade permite a adoção de medidas preventivas e terapêuticas que reduzem complicações graves, como trombose venosa profunda, embolia pulmonar e problemas obstétricos.
Além disso, o acompanhamento médico especializado é fundamental para definir a melhor estratégia de manejo para cada paciente, seja através de mudanças no estilo de vida, uso de anticoagulantes ou cuidados específicos em situações de risco, como gestação e uso de anticoncepcionais hormonais.
Investir no diagnóstico adequado e na prevenção personalizada é a melhor forma de proteger a saúde e garantir uma melhor qualidade de vida para pessoas com trombofilia. Se houver suspeita da condição, buscar avaliação médica é o primeiro passo para um tratamento seguro e eficaz.
Referências:
1. American Society of Hematology 2018 Guidelines for Management of Venous Thromboembolism
2. National Institute for Health and Care Excellence (NICE) Guideline: Venous thromboembolic diseases: diagnosis, management and thrombophilia testing
3. Royal College of Obstetricians and Gynaecologists Green-top Guideline No. 37a: Reducing the Risk of VenousThromboembolism during Pregnancy and the Puerperium
4. American College of Obstetricians and Gynecologists Practice Bulletin No. 197: Inherited Thrombophilias inPregnancy
5. European Society of Human Genetics Recommendations on Genetic Testing for Inherited Thrombophilia